sexta-feira, 5 de junho de 2009

O GOSTO DO IMPERCEPTÍVEL


Decálogo - 2º mandamento, Krzysztof Kieslowski, 1988.

Uma mulher anônima. “Parte das raízes negras e suaves do mundo.” Que escolheu passar a vida como se viver fosse uma doença, satisfeita por descobrir que “também sem a felicidade se vivia”. Uma mulher que desperta sob a visão de um cego a mascar chicletes.

Essa é a premissa de Clarice em Amor, o conto de Laços de Família que mais me impressionou. Humilhou. Pois sou eu ali.

“Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite – tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.” (grifo meu)

Eis a força da autora: deparar-se com a epifania miraculosa da vida na mais tola e inusitada situação. Pois o que aconteceu à Ana (personagem do conto)? Sentada no bonde, vendo o cego lá fora, esperando para atravessar... Que mistério há nisso? Apenas há. E quantas vezes não somos tomados assim? Ridicularizados em nossa rotina por um acontecimento que vibra e estremece nossas convicções não pela força de seu conteúdo, mas pelo simples e poderoso gesto de se fazer perceber parte do mundo, de nós.

Ela passa a olhar as coisas com um “prazer intenso”. Desce do bonde desnorteada e vagueia até o Jardim Botânico. Onde fica. Percebendo mesmo nas coisas imperceptíveis estar encurralada num “trabalho secreto” da vida.

O imperceptível do balançar de ramos. O imperceptível rumorejar das águas. O imperceptível caminhar das luxuosas patas da aranha sobre o tronco da árvore... O mesmo imperceptível que a receberá em seu lar, assim que tiver forças para se dirigir a ele. Lá, preparando o jantar, perceberá que o “trabalho secreto” prossegue, nas formigas que caminham próximo ao lixo, nas gotas d’água caindo do tanque, nos besouros que atravessam a janela, nos mosquitos que a rodeiam, na vida silenciosa que insiste em cercá-la, encurralá-la, como numa conspiração vital sem trégua.

Que coisa linda... Qualquer possibilidade de análise científica/teórica num texto assim soaria banal... Para mim é como se existissem coisas que prescindem mesmo de uma racionalização extrema, de uma reflexão mais profunda. Pois como responder ao que ocorre com Ana? Clarice faz isso comigo. Nem sei como tenho coragem de me debruçar sobre ela no meu projeto. Sinto-me um herege. Como se pretendesse encurralar o próprio Deus em palavras, em discursos...
Aliás, uma frase do conto referido me é primordial. Na verdade, é toda minha:

“Fora atingida pelo demônio da fé.”

Sou eu aí.

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